O papagaio, a galinha e a águia

papagaio NETANDRÉ FÁVERO
Bacharel, licenciado e mestre em Filosofia pela USP

 
Não é verdade que o ano, no Brasil, só começa após o Carnaval. Isso é uma afronta a qualquer trabalhador assalariado ou dona de casa.
Não é verdade que Deus ajuda a quem cedo madruga. Isso é uma clássica ideologia de patrões e serve mais aos interesses de quem se aproveita do conformismo dos explorados.
Não é verdade que o sol nasce para todos, ou seja, que todos têm oportunidades razoavelmente iguais e basta que façam por merecer suas conquistas que assim elas fatalmente virão. O nome dessa mentalidade é meritocracia, uma ideologia burguesa que acomete gravemente a classe média brasileira, incapaz de distinguir entre a questão ética do mérito individual e a questão política das condições historicamente construídas de injustiças sociais.
Não é verdade que nunca se deve dar o peixe, mas apenas a vara e ensinar a pescar. Em alguns casos, isso é indiferença e irresponsabilidade públicas com pessoas fragilizadas e em imediatas necessidades de sobrevivência, que inclusive têm direito constitucional à assistência social.
Não é verdade que trabalho mal feito é serviço de preto. Isso é racismo, portanto crime de injúria, inafiançável e imprescritível.
Não é verdade que lugar de mulher é na cozinha. Essas e semelhantes são afrontas machistas e injusta com todo tipo de presença que já exerceram em sua vida a sua mãe, sua avó, suas tias, sua esposa, sua filha, suas professoras…
Não é verdade que homem não chora. Isso é cruel com qualquer homem e o (des)educa para represar e depois descontar agressividades gratuitas nos outros e até em si mesmo.
Não é verdade que o homem ser forte e a mulher ser magra são sinônimos necessários de saúde e de beleza. Acreditar nisso é mero conformismo à ditadura estética de nossa época e cultura.
Não é verdade que apenas os opostos se atraem. Isso é desumano com pessoas do mesmo sexo, que são tão ou mais capazes de se amarem do que aqueles que os condenam.
Não é verdade que essas minorias sexuais, que lutam por reconhecimento igual de direitos, querem, na verdade, privilégios e pratiquem "heterofobia". Essa alegação é absurda e reforça o sentimento homofóbico que assassina um homossexual a cada 28 horas neste país, aliás o vergonhoso líder de mortes por essa motivação no mundo.
Não é verdade que apenas a união entre um homem e uma mulher e seus filhos formam uma família. Isso é uma grave desqualificação da rede de afetos e de sustentação em que vivem milhares de órfãos, viúvos, agregados, gente de qualquer idade, gênero, orientação sexual e grau de parentesco.
Não é verdade que pau que nasce torto morre torto. Isso é um absoluto desdém para com a Educação e uma perigosa cegueira quanto à transformação a que tudo no mundo está submetido, principalmente o ser humano.
Não é verdade que bandido bom é bandido morto. Isso é fascismo descarado e ainda é incoerência se você diz acreditar no crucificado que morreu perdoando o bom ladrão.
Não é verdade que todos os políticos e todos partidos são ruins e iguais, tampouco que a corrupção, no grau que aqui existe, é coisa recente no país. Isso é analfabetismo político, coisa de gente que enxerga apenas a superfície do tabuleiro do poder, segundo a versão já interpretada que o telejornal da noite o induz ingenuamente a assumir como irrefutável, transformando-o num indignado seletivo e barulhento sem desconfiômetro.
Não é verdade que quem não crê em Deus não seja uma pessoa boa. Isso é julgamento raso e preconceituoso.
Não é verdade que está errado quem não crê no mesmo Deus ou não celebra a fé da mesma maneira que você. Isso é intolerância religiosa. Assim como "cristofobia" é uma desculpa risível e esfarrapada para cristãos farisaicos continuarem a oprimir praticantes de religiões afro. Não, seus orixás não são o diabo! Este é apenas a desunião que maus cristãos ajudam a espalhar pelo mundo.
Não é verdade que a esperança é a última que morre. Às vezes ela é a primeira necessidade de alguém.
Não é verdade que contra fatos não há argumentos. O conhecimento acerca de qualquer fato é sempre e necessariamente perspectivado, narrado, interpretado e abordado em relações desiguais de poder e de interesses, desde os mais sutis e diversos aos mais explícitos e amplamente compartilhados.
Não é verdade que a verdade é uma só, isso é falta de aula introdutória de Filosofia, talvez porque se pertença àquelas gerações que foram privadas desse saber questionador pela política educacional instituída desde a ditadura militar no país até 2008.
O que não faltará em 2016, de novo, será gente papagaiando supostas verdades por aí, velhos provérbios falaciosos repetidos diuturnamente como um mantra, capazes de se introjetar em nós, nos amedrontar, nos paralisar, nos apequenar. Assumir um distanciamento crítico de certas opiniões e saber apreciar e cultivar a instabilidade da dúvida é uma arte vital para gente mais livre, mais forte, mais empoderada, mais alegre, mais leve.
Definitivamente, um papagaio, uma galinha e uma águia não podem ser equiparados só por serem aves. Tampouco nós, só por sermos todos fragilmente humanos. Se ainda não somos águias, também não é verdade que tenhamos de permanecer galinhas acovardadas ou papagaios que repetem o que ouvem sem pensar. Agucemos nossa visão de mundo, vençamos o medo de arriscar ser e fazer diferente, e calemos os discursos opressores. Por nós mesmos e porque certas convicções afetam seriamente a vida de outras pessoas. O voo do senso crítico é vertiginoso e a vida nos interpela para saltos corajosos e decididos em vales arejados por ideias libertadoras.

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Fonte: http://avpgraficaejornal.com.br/web/?p=11577