ANDRÉ FÁVERO
Professor e mestre em Filosofia pela USP
Moro numa área da cidade de São Paulo entre o centro e a Avenida Paulista, mais precisamente no apelidado Baixo Augusta, entre o ecletismo da Praça Roosevelt e a imponência arquitetônica do MASP. Trata-se de um perímetro bastante sensível às mais diversas manifestações de rua, das festivas às reivindicatórias, daquelas da esquerda às da direita, da Parada do Orgulho LGBT aos vergonhosos atos protofacistas e conservadores. Junho de 2013, por exemplo, foi uma loucura aqui no bairro! É uma espécie de região-termômetro com precisão incrível dos ânimos sociais, às vezes de alcance nacional, às vezes mais locais.
Dessa área da nossa maior e mais cosmopolita megalópole, o convite ao arejamento de i-deias e à descoberta de tendências de todo tipo mexem muito conosco, bem como o agito político. Mexem, ao menos, com aqueles cujo espírito não se fecha ao valor das diferenças e cujos corpos não insistem em se enclausurar num automóvel, casos socialmente patológicos de muitos paulistanos. É de coisas importantes e que me tocam de perto, do (meu) local e do nacional, que quero tratar aqui hoje, enquanto a censura ainda não voltar a se impor neste país.
Como o leitor já sabe, estou entre aqueles muito indignados que entendem estarmos vivendo em pleno golpe de Estado. Neste contexto generalizado de insatisfação política, durante a curtíssima e pouco pedagógica temporada de campanhas para as eleições municipais daqui, achei bizarramente irresponsáveis e hipócritas as campanhas da ex-prefeita Marta Suplicy, de Celso Russomano e do tucano (in)gloriosamente vitorioso João Dória Jr., todos se declarando contra uma tal “indústria da multa” e pelo término da redução das velocidades máximas nas marginais, divulgando desinformações que colaram na cabeça de muitos eleitores. A meu ver, fiscalizações por órgão público municipal deveriam ser aplaudidas e incentivadas, e delitos de maus condutores merecem ser multados como medida punitiva e corretiva.
Assim, além desses candidatos apequenarem e sujarem o debate eleitoral aqui, essa inversão entre infratores (maus motoristas) e vítimas (pedestres e bons motoristas), esse sacrifício da justiça pelo blábláblá da impunidade, enfim, toda essa má-fé só prejudicou a capital, que mal estava começando a se humanizar, desde sua mais evidente barbárie: o trânsito saturado e caótico que sofreu significativas melhoras, ao estilo das mudanças adotadas em grandes cidades modernas da Europa etc.. Do lado de quem prioriza a coletividade, os números positivos e incontestáveis de aumento da velocidade média (conceito que poucos compreendem) e da segurança no trânsito (vidas e feridos poupados) não bastaram contra os que tiveram preguiça de se informar direito.
Aliás, aproveito para sugerir pesquisarem no google o artigo ''Por que fatos importam pouco quando a convicção é grande demais'', de Beatriz Montesanti (10/09/2016, no jornal eletrônico Nexo). Há explicações bastante interessantes e bem embasadas lá sobre as teimosias dos eleitores de cabeça oca e dedinhos podres. Entre os fatos e a “necessidade” de certezas há sempre a possibilidade do conhecimento, mas também a senda do autoengano. E hoje o Brasil, sobretudo em matéria de política, está cheio de gente aí enveredada, dessa gente perdida que berra suas frágeis certezas na tentativa inútil de elevarem-nas a alguma verdade. Quanto mais berram, mas evidenciam sua falta de fundamento; que 2+2=4 não se precisa gritar para convencer alguém.
Mudo agora bruscamente de assunto, embora ainda no bojo das consequências catastróficas da temeridade e do analfabetismo políticos que vivemos. Como educador, não posso ignorar o tema da Medida Provisória autoritária que visa “deformar” o Ensino Médio em nível nacional. Sobre ela, detenho-me por ora num único aspecto, a flexibilização da grade curricular dos alunos.
Não podemos ignorar o triste fato de que no ensino público o desinteresse pelos estudos e a evasão escolar nessa fase final são alarmantes. A chamada flexibilização tem a vantagem de poder tornar a escola mais interessante para os estudantes, na medida em que a partir da metade desse período poderiam optar pelas matérias mais afins com sua intenção profissional. Já é assim em boa parte do mundo.
Para os alunos das escolas particulares, ela pode ter mais de positivo do que de negativo, afinal, quem não precisa começar a trabalhar desde cedo para colocar grana em casa pode se dedicar à mais sofisticada formação até por volta dos 30 anos. Mas e para os alunos das escolas públicas, que são a imensa maioria dos estudantes no país? O problema é lhes dar mais liberdade sem que a qualidade das opções esteja à altura de sua boa formação, o que certamente será o caso, inclusive de uma formação universitária que possa lhe garantir maior remuneração no futuro. Afinal, sabemos bem que os políticos que destituíram a presidenta Dilma Rousseff nunca favoreceram o ensino público – vide o Estado de SP, com tentativa de fechar escolas, encerramento de turmas lotando outras, merenda roubada e professores com salário de miséria. Então querem mesmo que acreditemos que flexibilizarão a grade curricular para manter os alunos nas escolas, para promover inclusão social?
Assim como tudo o que virá de um governo com vício de origem, o conjunto das imposições trazidas pela MP é pra lá de suspeito. Apesar do que alegam, a ideia é empurrar o alunado mais pobre, e que permanecer na escola, ao ensino técnico-profissionalizante desde cedo e assim gerar mão-de-obra barata a médio e longo prazo, pois precisam pagar alguns financiadores do golpe (por exemplo, a elite industrial paulista), enquanto professores e alunos pagam o pato.
E sobre essa precocidade do direcionamento dos alunos todos (de públicas e particulares) para o “mercado de trabalho” (expressão horrível), bem, aí as realidades socioeconômicas relativizam e, em muitos casos, até invertem as prioridades entre os alunos. E a turma daquele senhor que atualmente ocupa o cargo de ministro da educação aposta, ao mesmo tempo, na necessidade imediata de trabalho que impera sobre os empobrecidos e com o agrado que a mudança faria aos filhos dos mais abastados, muitos acostumados à ampla gama de alternativas na vida para fazerem suas escolhas. Daí a crítica, vinda de uma aluna esperta, de que, no caso dos alunos desfavorecidos da rede pública, trata-se de uma falsa liberdade, ou é melhor contar com mais opções quando todas elas podem ser piores?
E isso tudo será meio caminho andado para intensificarem o já iniciado desmonte das universidades públicas (federais e muitas das estaduais), até pouco tempo uma alternativa para os alunos de famílias de baixa renda via ENEM. Pior, muito provavelmente já veremos também, neste ano, um ENEM que pode começar a se transformar na direção dos interesses neoliberais para a educação, fiquemos atentos. Seja como for, os alunos fazem muito bem de se fazerem ser ouvidos nessa história toda, têm mais é que ocupar seus espaços e resistir. Educação é direito, está na carta magna. Mas, na prática, até onde a Constituição está mesmo valendo no Brasil?
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Fonte: http://avpgraficaejornal.com.br/web/?p=12820